quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Data: 24 de Dezembro

(ams)

Ora foi que certo dia
o homem eclipsou-se.
– A data! Digam a data,
a datasinha, faz favor!
– Qual data! Foi por decreto
que o homem se eclipsou,
foi só manobra, espertice,
um, dois, três e, pronto, é noite,
que nem a Lua apareça
seja de que lado for!
(...)

Mário de Cesariny

domingo, 20 de dezembro de 2009

Ter ou não ter...

(ams)

(um fascínio, um erro, uma falha, tudo se inicia assim. um fascínio, um erro, uma falha)

fugi da fuga de te desistir, de te encontrar onde eu não poderia estar. fugi de te perder, apesar de saber que perder-te não era decisão minha.

(perder é deixar de possuir, um estado de transição entre o ter e o não-ter)

perder nunca foi o que nos aconteceu. divergimos, talvez.

encontraste-me sem corpo, uma alma sem trela, a vaguear por uma casa de orgasmos, a tua casa de orgasmos nos orgasmos de um outro corpo. fraqueza.

despojada de ti, agarrada a uma sensação de retorno, não desisti.

nunca desisti, amor.

Pedro Chagas Freitas

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Outro Dia

( A. M. )
cai na manhão do coração desolado
a toutinegra que longe daqui cantava e
nesse instante
a tristeza do rosto subiu aos lábios
para queimar a morte próxima do corpo e
da terra


mas se a noite vier
cheia de luzes ilegíveis de véus
de relógios parados - ergue as asas
fere o ar que te sufoca e não te mexas
para que eu fique a ver-te estilhaçar
aquilo que penso e já não escrevo - aquilo
que perdeu o nome e se bebe como cicuta
junto ao precipício e à beleza do teu corpo
...


Al Berto

domingo, 13 de dezembro de 2009

A Caixa

(ams)

E depois ainda ela disse: “A minha Box tira fotografias que não há como elas. E vê coisas que antes nem lá estavam. Ou então mostra aquilo que a vocês nem em sonhos vos ocorreria. É omnividente, a minha Box. Deve ter ficado assim depois do incêndio. Desde então perdeu o juízo.”
(…)
Só sei uma coisa: aquilo que a Marie fotografava com a sua Agfa saía tal qual lá estava. Totalmente sem batota, fosse de que espécie fosse, por muito marado que possa parecer.
Günter Grass, in “A Caixa”

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Ilumina-me

(ams)

Gosto de ti como quem gosta do sábado
Gosto de ti como quem abraça o fogo
Gosto de ti como quem vence o espaço
Como quem abre o regaço
Como quem salta o vazio
Um barco aporta no rio
Um homem morre no esforço
Sete colinas no dorso
E uma cidade p'ra mim

Gosto de ti como quem mata o degredo
Gosto de ti como quem finta o futuro
Gosto de ti como quem diz não ter medo
Como quem mente em segredo
Como quem baila na estrada
Vestido feito de nada
As mãos fartas do corpo
Um beijo louco no Porto
E uma cidade p'ra ti

Enquanto nao há amanhã
Ilumina-me


Pedro Abrunhosa


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O tempo é irreal

( A. M. )

O tempo é irreal...

Devaneio numas asas tão grandes que voam contra a duração de um corpo, que na solidão de uma cadeira alimenta o brilho de uma essência de cabelos brancos celestes....

O tempo é irreal...

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A árvore miraculada

( A. M. )

Os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada...
Mário Cesariny

domingo, 29 de novembro de 2009

Solidão

(ams)


Ó solidão! À noite, quando, estranho,
Vagueio sem destino, pelas ruas,
O mar todo é de pedra... E continuas.
Todo o vento é poeira... E continuas.
A Lua, fria, pesa... E continuas.
Uma hora passa e outra... E continuas.
Nas minhas mãos vazias continuas,
No meu sexo indomável continuas,
Na minha branca insónia continuas,
Paro como quem foge. E continuas.
Chamo por toda a gente. E continuas.
Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.
Invento um verso... E rasgo-o. E continuas.
Eterna, continuas... Mas sei por fim que sou do teu tamanho!

Pedro Homem de Mello

domingo, 22 de novembro de 2009

Ao rosto vulgar dos dias

( A. M. )

Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.
Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.
Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.
*
Ao rosto vulgar dos dias,
A vida cada vez mais corrente,
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.
*
Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.

Alexandre O´Neill

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Dizem que a paixão o conheceu

( A. M. )

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

Al Berto

domingo, 8 de novembro de 2009

Portugal


( A. M. )

....

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...


Alexandre O'Neill

Tributo a Paula Rego

ams

"Pinto para dar uma face ao medo."

"O que eu pinto é triste? É cru? Acho que não. Pinto a verdade."

Paula Rego

domingo, 1 de novembro de 2009

Faz-se luz pelo processo


( A. M. )

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas do próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

Mário Cesariny

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Miragem

(ams)
(...)
Há um navio fantasma
na voz de uma peixeira
de um velhote com asma
e da própria ribeira

A Ponte é uma passagem
A Ponte é uma passagem
Para a outra margem
Desafio
Pairando sobre o Rio
A Ponte é uma miragem

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Saramag(u)ices

( A. M. )
“Portugal deveria ser província de Espanha” ... "O Deus da Bíblia não é de fiar: é vingativo e má pessoa"; “Sobre o livro sagrado, eu costumo dizer: lê a Bíblia e perde a fé!"...
“Deus é um filho da puta”... “Não cumprimento Cavaco Silva”... “A democracia é uma realidade que não existe. Quem verdadeiramente manda são instituições que não têm nada de democráticas, como é o caso do Fundo Monetário Internacional, as fábricas de armas, as multinacionais farmacêuticas"... "A língua é minha, o sotaque é seu"... “A estupidez não escolhe entre cegos e não cegos. É uma manifestação de mal humor, assente sobre coisa nenhuma, e pronto, acabou, nada mais”... “O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo”... “Não vou sentar-me outra vez no banco da escola primária”... "Dizem-se representantes de Deus na terra (nunca o viram e não têm a menor prova da sua existência) e passeiam-se pelo mundo suando hipocrisia por todos os poros"...

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Xiuuuuuuuuuu

(ams)

Sentia-me à vontade em tudo, isso é verdade, mas ao mesmo tempo nada me satisfazia. Cada alegria fazia-me desejar outra. Ia de festa em festa. Acontecia-me dançar noites a fio, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Por vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, o meu desenfreamento, o violento abandono de cada qual, me lançavam para um arroubo ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me, no extremo da fadiga e no lapso de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas a fadiga desaparecia no dia seguinte e, com ela, o segredo; e eu atirava-me outra vez.

Albert Camus

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

sábado, 10 de outubro de 2009

O Café

(AM)

Escrevo um poema sobre a rapariga que está sentada
no café, em frente da chávena do café, enquanto
alisa os cabelos com a mão. Mas não posso escrever este
poema sobre essa rapariga porque, no brasil, a palavra
rapariga não quer dizer o que ela diz em portugal. Então,
terei de escrever a mulher nova do café, a jovem do café,
a menina do café, para que a reputação da pobre rapariga
que alisa os cabelos com a mão, num café de lisboa, não
fique estragada para sempre quando este poema atravessar
o atlântico para desembarcar no rio de Janeiro. E isto tudo
sem pensar em áfrica, porque aí lá terei
de escrever sobre a moça do café, para
evitar o tom demasiado continental da rapariga, que é
uma palavra que já me está a pôr com dores
de cabeça até porque, no fundo, a única coisa que eu queria
era escrever um poema sobre a rapariga
do café. A solução, então, e mudar de café, e limitar-me a
escrever um poema sobre aquele café onde nenhuma rapariga se
pode sentar à mesa porque só servem cafés ao balcão.


Nuno Júdice

terça-feira, 6 de outubro de 2009

poderia...

(ams)


escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como um castanheiro dos contos sussurrados junto ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor

ou confundir-me com o sonho de cidade que pouco a pouco morde a sua imobilidade

Al Berto

Em todas as ruas te encontro


( A. M. )

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
Mário Cesariny

domingo, 4 de outubro de 2009

ComPORTO-me


( A. M. )
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Maldito relógio que vomita o tempo..... E eu... ComPORTO-me...

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

(ams)

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos… sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta… dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci… acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, e não tenho a quem a deixar.)

Al Berto

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Partir

(ams)

Véspera de viagem, campainha...
Não me sobreavisem estridentemente!
Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de pôr no estribo um pé
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir.
Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa?
Todo o Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.

Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação...

(...)

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...


Álvaro de Campos

Estação


( A. M. )

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

Mário Cesariny